Dada a situação a qual o mundo passa desde o fim de 2019, é inevitável observar as semelhanças entre a crise sanitária que vivemos e a praga que quase dizimou a viticultura europeia durante o século XIX.
Um inimigo praticamente invisível e de difícil identificação, o inseto adoece a vinha se alocando em suas raízes. Há quem diga que a primeira ocorrência documentada de Filoxera se deu no sul da Inglaterra, sendo pouco tempo depois, identificada em vinhedos em Languedoc, na França, região que perdeu quase metade de suas vinhas durante a infestação.
Há também estudiosos da praga que atribuem sua gênese à vinhas de vitis labrusca oriundas da América do Norte. Posteriormente às grandes navegações, era muito comum a prática de transporte de plantas e animais nativos da América para a Europa, sendo possível que durante este período o inseto tenha sido transportado via equipamentos da época ou mesmo outros produtos oriundos da agricultura.
Impacto na vinicultura
Até que um enxame da filoxera tenha sido observado se alimentando de uma raiz pelo bíólogo francês Jules-Emile Planchon e sua equipe em 1868, meia década já havia se passado desde sua primeira observação, o que possibilitou uma grande disseminação do inseto pelos vinhedos europeus. Somente em 1870 a teoria de Planchon seria validada pelo americano Charles Valentine Riley.
O impacto na vinicultura europeia foi estrondoso, dado que o ciclo de vida médio de uma vinha até o momento de sua colheita é de 5 anos para que a planta esteja madura o suficiente para gerar uvas de qualidade adequada. O processo de envelhecimento e guarda de alguns produtos também acrescentam alguns anos até que vinho possam chegar ao consumidor final. Isto significa um atraso significativo no ciclo econômico do vinho, fator que culminou da falência de muitos produtores, improdutividade de terras e anos para a recuperação do segmento. Acredita-se que em 15 anos de infestação o continente havia perdido 40% de suas vinhas, sem falar em variedades de vitis vinifera que foram extintas.
A “Guerra das Soluções”
Um Congresso Internacional da Filoxera ocorreu em 1881 em Bordeaux num esforço internacional para tentar mitigar os efeitos da Filoxera. Entre as soluções oferecidas até então – que envolviam de tudo, desde o uso de aves que se alimentam do inseto até o uso de sapos presos aos pés das videiras -, duas linhas de pensamento se destacaram: de um lado, defensores do uso de pesticidas, defensores agrícolas e outros produtos agrícolas e de outro a peculiar solução de usar enxertos de vitis labrusca para o cultivo de vitis vinifera.
O maior porta voz da solução dos enxertos era o viticultor francês Leo Laliman, ele era proprietário de vinhedos em Bordeaux. Sua defesa do método gerava controvérsia na França e propiciou o famoso episódio no qual ao reclamar pelo prêmio de 320.000 francos que o governo francês concederia a quem criasse a “cura” para a infestação, ele recebera a resposta de que sua solução apenas impediria a persistência da praga.
Os defensores da tese de Laliman eram comumente chamados de “Americanistas” ou “Mercadores de madeira”. A prática se mostrou eficaz, sendo amplamente disseminada posteriormente da vitivinicultura do continente.
A filoxera no “Novo Mundo”
A filoxera continua até hoje sem um defensivo agrícola que efetivamente elimine o inseto ou impeça seus meios de proliferação. O enxerto de variantes resistentes à praga ainda é a solução, além de, em alguns momentos, a escolha de solos mais arenosos que diminuam a probabilidade de infestação.
Um dos pouquíssimos produtores de vinho do novo mundo que mantiveram a pureza de seus exemplares de vitis vinifera é o Chile, em virtude de sua “fortaleza” geográfica propiciada pela cordilheira do Andes, deserto do Atacama e Oceano Pacífico. Hoje o país é exportador de mudas intocadas pela praga para o mundo todo. Outros detalhes sobre o tema e a fantástica história da Carmenére você encontra no e-book “Chile: Vinicultura, vinhedos e tudo mais” da Ville du Vin.